quinta-feira, 6 de maio de 2010

Reflexão teológica sobre o texto: A Igreja na Teologia Reformada do Século Dezesseis

MCNEILL, J. T. Grandes temas da tradição reformada – A Igreja na Teologia Reformada do Século Dezesseis. São Paulo: Pendão Real, 1998, pp. 150-159.

Por Claudecir Bianco – 06/05/2010

Os fundadores do protestantismo não se propuseram somente a um reavivamento da piedade pessoal: também era seu objetivo reestruturar formas corporativas de religião. Eles não buscaram converter indivíduos à fé protestante somente para deixá-los numa situação de isolamento solitário; trabalharam para reedificar a Igreja e sentiram-se profundamente chamados a serem agentes desta restauração.

A eclesiologia é uma parte proeminente e essencial de sua teologia.

Antes da Segunda Guerra Mundial, teólogos historiadores do continente europeu estiveram examinando a eclesiologia dos reformadores, com crescente entusiasmo e atenção aos detalhes.

A substância deste trabalho deriva das declarações de reconhecidos líderes do ramo reformado do protestantismo e, neste campo, se restringe às passagens mais características dos trabalhos de Zuínglio, Bullinger, Calvino e Zanchius.

No pensamento dos teólogos reformados, luteranos e calvinistas, como também no de Agostinho, o conceito de Igreja se move dentro de uma elipse cujos focos são a perfeição celestial e a imperfeição humana.

No primeiro debate de Zurique (1523), Zuínglio afirma que a verdadeira Igreja não é terrestre, mas espiritual, “a noiva sem mácula de Jesus Cristo, governada e animada pelo Espírito de Deus”. No seu Tratado Sobre a Verdadeira e a Falsa Religião (1525), ao analisar a Igreja de Cristo, destaca que ela não é a hierarquia, mas o povo cristão.

Ao lado do corpo defeituoso e empírico dos que professam a fé, Zuínglio coloca o que ele chama de “uma segunda espécie de Igreja”, que consiste daqueles que são verdadeiramente fiéis e que é “a Igreja gloriosa e nobre, a esposa de Cristo, sem qualquer mácula ou ruga”.

Cada uma das igrejas em particular tem autoridade disciplinar sobre seus membros, “mas todas estas igrejas são uma só Igreja, a esposa de Cristo, que os gregos denominam católica e nós, universal.

Em 1530, Zuínglio apresentou uma declaração de suas crenças a Carlos V – Fidei ratio (“Uma justificativa da fé”). Ele distinguiu os diversos significados da palavra Igreja nas Escrituras: 1- a Igreja exclusiva dos eleitos que é conhecida unicamente por Deus; 2- a Igreja universal perceptível (universalis sensibilis eclésia) dos cristãos nominais ou professantes (os quais, porém, são algumas vezes denominados os “eleitos”, como em 1 Pedro 1.1-2); 3- cada congregação local da Igreja universal e visível. A última, quando mantém a verdadeira confissão, é uma só por toda parte e inclui as crianças batizadas.

O texto “Pequena e Clara Exposição da Fé Cristã”, dirigido a Francisco I, em 1531, contém uma breve declaração a respeito da Igreja. Aqui, seu pensamento gira ao redor das palavras invisível e visível, bem como da relação entre a Igreja e o estado. Os membros da Igreja invisível são conhecidos somente por Deus e por si mesmos. A Igreja visível não é a romana, mas a de todos os cristãos batizados. Visto que alguns destes membros rebeldes e traidores, indiferentes às censuras da Igreja, há necessidade de um governo temporal para reprimir tais pecadores.

Bullinger segue e, em alguns pontos, expande o ensino de Zuínglio sobre a Igreja. Nas “Décadas” (1549-51), Bullinger, citando Cipriano, Agostinho, Gregório, o Grande, Pascásio, Leão, o Grande, e Tomás de Aquino, a respeito da omissão da palavra em na afirmação do credo: “Creio na santa Igreja católica”, interpreta que a cláusula significa que “devemos conhecer e confessar a Santa Igreja Católica”.

A Igreja de Cristo “se estende por toda a extensão do mundo e por todas as épocas, contendo todos os fiéis, desde o primeiro Adão até o realmente último santo”.
A Quinta Década de Bullinger (1551) constitui um extenso tratado a respeito da Igreja. “A Igreja Católica” e contém os principais elementos de sua eclesiologia. Ele descreve a igreja como “toda a companhia e multidão dos fiéis”.

Esta Igreja é normalmente denominada católica, isto é, universal. Pois ela estende seus ramos por todos os lugares do vasto mundo, em todos os tempos de todas as épocas; e em geral compreende todos dos fiéis do mundo todo. Bullinger distingue a Igreja triunfante da militante, lutando contra o pecado no mundo- como os “membros vivos” da interna e invisível Igreja de Deus, como nós professamos no Credo, e – como a Igreja “externa e visível” dos que professam a verdadeira religião, alguns dos quais são infiéis.

Muitos aspectos subordinados da doutrina são mencionados neste sermão. Ele termina com uma seção devota à questão do poder da Igreja – o poder para ordenar ministros, para ensinar a verdadeira doutrina, para atar e destacar, parar administrar os sacramentos e avaliar as doutrinas. Bullinger redige aqui um esboço da doutrina do poder da Igreja que viria para ser elaborada na teologia reformada posterior.
Como os outros reformadores, Bullinger enfatiza o amor que une os membros da Igreja em uma íntima comunhão, destacando passagens do Novo Testamento a respeito da caridade ou amor.

Bullinger adverte contra cismas por diversidade de opiniões que não afetam a doutrina fundamental, por infrações de ministros, por diversidade de cerimônias e por mau comportamento de membros particulares, mas justifica a saída de uma instituição na qual as obras internas e externas da verdadeira Igreja estejam ausentes. Juntamente com isto, ele enfatiza o senhorio único de Cristo sobre sua Igreja.

Em sua Instrução aos Protestantes da Bavaria (1559), Bullinger responde a uma série de questões com uma abordagem sobre as marcas da verdadeira Igreja, a Palavra e os sacramentos. Ele sustenta que a Igreja universal não está confinada no que diz respeito ao lugar e que não há salvação fora dela.

Ele desacredita a reivindicação baseada na sucessão episcopal e declara que a Igreja Romana sob o papa não é a Igreja católica universal.

Em resposta à questão a respeito de onde a verdadeira Igreja universal tem estado até agora, Bullinger aponta as igrejas gregas e oriental e os crentes separados de Roma sob o domínio turco e de outros opressores. Não há salvação fora da Igreja cristã, mas isto não pode ser dito a respeito da Igreja Romana. Ele encoraja a esperança da salvação de “nossos antepassados”.

Para mostrar a sobrevivência oculta da Igreja, Bullinger menciona a conhecida passagem de Elias e os sete mil em Israel.

O ensino de Calvino sobre a Igreja é caracteristicamente lúcido e abrangente. Exposição de seu pensamento maduro sobre “a Igreja, seu Governo, Ordens e Poderes”, que se estende através de dezenove dos vinte capítulos do Livro IV da edição de 1559, das Institutas. Como Lutero, Calvino identifica a expressão “Igreja católica” com a “comunhão dos santos” do Credo dos Apóstolos. “Ela não deve ser negligenciada porque expressa muito bem o caráter da Igreja, como se estivesse sendo dito que os santos estão unidos na comunhão de Cristo numa condição em que eles comungam mutuamente qualquer benefício que Deus lhes oferece”.

Segundo seu ponto de vista, por um lado, a Igreja é provida de membros por predestinação divina e, por outro lado, é uma assembléia ou comunidade em que os membros comungam mutuamente suas bênçãos.

Calvino distingue os dois sentidos contidos nos usos da Escritura da palavra Igreja. Em um sentido, significa a Igreja como Deus a vê, consistindo somente daqueles “que, por adoção e graça, são filhos de Deus e, pela santificação do Espírito, membros verdadeiros de Cristo.” No outro sentido escriturístico, a palavra designa “toda a multidão dispersa pelo mundo que professa adorar um só Deus e Jesus Cristo”, partilha os dois sacramentos e se conforma exteriormente à Igreja. Nesta Igreja visível existem muitos hipócritas, mas Calvino afirma a necessidade de comunhão com ela: “Portanto, assim como é necessário crer na Igreja que é invisível a nós, sendo conhecida somente por Deus, da mesma forma nos é ordenado que respeitemos e mantenhamos comunhão com esta Igreja, que é visível aos seres humanos”.

Calvino enfatiza com insistência a pecaminosidade do cisma. “Pois o Senhor estima tanto a comunhão de sua Igreja que ele considera como um traidor e apóstata da religião quem perversamente se retira de qualquer sociedade cristã que preserva o verdadeiro ministério da Palavra e os sacramentos”. O argumento de Calvino aqui leva à declaração enfática de que “sair da Igreja é renunciar a Deus e a Cristo” (Institutas, 4.1.10).

Na obra da salvação, do qual Calvino fala com entusiasmo: “Podemos aprender do título de Mãe como é útil e até mesmo necessário conhecê-la; visto que não existe outro caminho de entrada na vida, a menos que sejamos concebidos nela, nascidos nela, nutridos em seu seio e continuamente preservados sob seu cuidado e governo” (Institutas, 4.1.14). A edificação dos fiéis acontece “sob a educação da Igreja” (Institutas, 4.1.5).

Então, como a verdadeira Igreja visível é reconhecida? Onde quer que encontremos a Palavra de Deus puramente pregada e ouvida e os sacramentos administrados de acordo com a instituição de Cristo, aí, sem dúvida, está a Igreja de Deus. Ainda: onde a Palavra é ouvida com reverência e os sacramentos não são negligenciados, encontramos, quando for o caso, uma forma da Igreja, a qual não está sujeita a suspeição.

A diversidade de opinião a respeito dos pontos não essenciais de doutrina não deve ser causa de discórdia entre as igrejas. Somos tão propensos a ignorância que diferenças triviais não devem se tornar pretexto para abandono da Igreja. E, para suportarmos as imperfeições da vida devemos praticar muito mais a indulgência.
Condenar a fraqueza dos membros da Igreja é uma coisa; renunciar à comunhão da Igreja por causa disto é outra. A Igreja, não o indivíduo, tem autoridade para excomungar. Uma passagem forte de Cipriano é citada em defesa deste ponto de vista.

A Igreja é santa no sentido de que, diariamente, progride em direção à santidade: ela não chegou à perfeição.
Se estas inúmeras passagens tivessem sido observadas pelos mais intolerantes seguidores de Calvino, a história das igrejas reformadas poderia ter sido mais feliz do que foi.

Calvino observa que, no Credo, a “comunhão dos santos” é seguida, imediatamente, pela “remissão de pecados”, no que a graça de Deus é constantemente exercida para com os membros da comunidade.

Calvino também rejeita a reivindicação católica romana de que a igreja papal é a verdadeira e única Igreja. Ele afirma que aquela igreja deixou a Palavra e introduziu um culto impuro e idólatra. “A comunhão da Igreja não foi instituída como um vínculo para nos prender na idolatria, impiedade, ignorância de Deus e outros males”. Portanto, deixar a igreja de Roma não é um ato de divisão, mas uma necessidade espiritual.

Ele devota um importante capítulo (4.12) à disciplina corretiva da Igreja, que sustenta ser de primeira necessidade, como os músculos ou ligamentos que unem os membros do corpo. Pela disciplina “aqueles que caíram anteriormente podem ser punidos em misericórdia e com a brandura do espírito do cristianismo”. Calvino distingue o tratamento das ofensas privadas e notórias, bem como as delinqüências leves, para as quais a admoestação e a repreensão são suficientes, dos crimes graves, tais como o adultério, o furto, o roubo, a sedição e o perjúrio, pelos quais os transgressores devem ser excomungados.

A jurisdição disciplinar da Igreja se estende sobre todos, príncipes e plebeus, visto que, “os certos e os diademas dos reis” estão convenientemente sujeitos a Cristo (Institutas, 4.12.7).
“O desígnio da excomunhão é o de que o pecador seja trazido ao arrependimento”.
Mesmo aqueles que permanecem obstinados não devem ser “condenados à morte eterna” pela Igreja, a qual não pode estabelecer limites para a misericórdia de Deus (Institutas, 4.12.9).

Jerônimo Zanchius (Hieronymus Zanchius, 1516-90), um erudito italiano que lecionou em Estrasburgo e Heidelberg, foi muito influente entre os teólogos reformados depois da morte de Calvino.

Ele subscreveu a Confissão de Augsburgo – como explicou (1563) numa carta a Grindal – logrou contar com a aprovação de Calvino. Mais conciliador talvez do que a maior parte dos teólogos reformados, ele era realmente um discípulo de Calvino; suas obras podem ser melhor lidas como uma reafirmação da doutrina calvinista e, ao mesmo tempo, como uma introdução à era escolástica da teologia reformada.

Esta verdadeira Igreja consiste somente dos eleitos: hipócritas estão nela, mas não são dela. Zanchius considera a Igreja em suas três características: una, católica e santa. Ele expõe a doutrina da unidade da Igreja. Ela sempre foi e é um corpo, do qual Cristo foi feito a cabeça pelo Pai, e um espírito, pelo qual os membros se unem à cabeça. Ela tem uma fé, uma salvação e uma herança nos céus. Antes da vinda de Cristo, a Igreja se identificava com “aquela que existe agora e existirá até o fim do mundo”. Ela é una no que diz respeito aos tempos, aos lugares e às pessoas e, assim, “dizemos que ela é uma comunhão de todos os santos e sustentamos que foi estabelecida pela Sagrada Escritura, sendo que aqueles que se separam perpetuamente dela não pertencem a seu corpo”. A Igreja é também, em segundo lugar, santa. Ele afirma que ela é “verdadeiramente católica, isto é, universal”, porque a sua cabeça é católica e eterna, sendo que seus membros estão unidos a ela em todos os tempos e lugares, de todas as raças e nações.

Zanchius nada tem de peculiar, exceto, talvez, uma clareza de linguagem incomum que o diferencia dos outros teólogos reformados. A pura doutrina do evangelho é pregada, ouvida “e aceita com exclusividade”. O caminho seguido pela disciplina, exercida com caridade, é a admoestação privada e pública, a correção e, em casos extremos, a excomunhão.

Zanchius defende a doutrina da unidade na medida em que a pureza da doutrina é observada.
Deve-se empenhar mais pela unidade da Igreja católica em geral do que pela unidade da igreja em particular. Mas o rompimento com a igreja de Roma não é, por causa de sua apostasia um abandono da unidade do corpo de Cristo. Não pode haver nenhuma santidade e nenhuma salvação fora da Igreja católica de fé, mas este aspecto não está ligado a pessoas ou lugares específicos.

Estas passagens características oferecem alguma indicação a respeito dos elementos que integraram a exposição dos reformadores sobre a doutrina da Igreja. Eles sustentaram em comum uma concepção elevada da Igreja, como a agência divinamente ordenada pela qual as almas são “revivificadas” e santificadas. A Igreja é a santa esposa de Cristo e nesta condição, como diz Calvino, é mãe daqueles de quem Deus é Pai. Todos eles distinguiram, na Igreja, os aspectos de perfeição celestial e os aspectos de imperfeição terrena – a Igreja invisível e visível. Juntamente com os teólogos luteranos, eles negaram que a Igreja invisível é uma entidade imaginária, meramente uma espiritual República de Platão.

A tarefa da reforma da Igreja é manifestar a Igreja de Deus que está oculta.
Tanto invisível como visível, a verdadeira Igreja é “una, santa e católica”. É afirmado que a Igreja visível é católica e ecumênica. Espalhada por toda a terra, ela professa uma fé comum e conserva uma comunhão universal. A cabeça, Cristo, sendo uma, o corpo não pode ser uma pluralidade. Sua catolicidade e unidade dependem da cristocracia, e seu senhorio humano.

Não devemos ser impacientes com suas imperfeições e é um lamentável pecado sair da Igreja, enquanto ela conserva as marcas de sua realidade como Igreja.
A Igreja sobrevive a todos os ataques e tumultos, providenciando uma comunidade de filhos de Deus e servindo dinamicamente a causa do Reino de Deus no mundo, até o fim do drama terreno.

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Concordo com o autor ao afirmar que muitas ênfases sobre a Igreja estão sendo perdidas. Alias, em minha opinião, não é só assuntos como a eclesiologia que estão sendo “esquecidos” nos tempos atuais, vários assuntos que, no passado, corroboraram para uma fundamentação teológica sóbria, estão sendo deixados ao segundo plano.

Para grande parte dos Cristãos, os reformadores são totalmente desconhecidos. Falta até mesmo uma simples curiosidade para saber quem foram estes homens que ousaram se posicionar frente ao controle religioso e que promoveram este grandioso movimento.

Pessoas simples, muitos humildes, que nem mesmo salários recebiam, mas de uma coragem e fé que ainda hoje nos desafia. Muito mais do que o exemplo prático de vida destes reformadores, foi também suas habilidades em organizar de forma sistemática suas opiniões nos mais variados escritos, para que no futuro, sobre estes alicerces, pudéssemos fundamentar nossa opinião.

É um desafio, ler um texto como este apresentado por McNeill, e ter que resumir ainda mais essas maravilhosas reflexões. As argumentações aliadas às fundamentações que estes reformadores apresentam, soam como melodias aos nossos ouvidos. Por exemplo, as declarações de Calvino ao afirmar que “sair da Igreja é renunciar a Deus e a Cristo”, impressionam. Num tempo em muitos valores foram substituídos, a última coisa que uma pessoa poderia pensar seria essa, ou melhor, arrisco a dizer que ela nunca pensaria. Sempre teremos desculpas para fundamentar nossas tomadas de decisões. O problema sempre estará no outro.

Faço uso das palavras de Zanchius, apresentadas no texto, “quantos hipócritas estão na Igreja, mas não são dela”.
Devíamos cada um há seu tempo, perguntar como os discípulos, quando Jesus disse que um deles o iria trair:
“E eles, muitíssimo contristados, começaram um por um a perguntar-lhe: Porventura, sou eu, Senhor?” Mateus 26.22.

Porventura sou eu Senhor, que não amo Sua Igreja como estes bravos homens amaram?

Porventura sou eu Senhor, que ainda não sei viver uma vida como o Senhor ensinou?

Que o Senhor nos ajude a amar Sua Igreja.

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