quarta-feira, 12 de maio de 2010

Reflexão teológica sobre o texto: Como vivemos a salvação

ZABATIERO, J. P. T. (org.) Curso Vida Nova de Teologia Básica. Teologia Sistemática. – Como vivemos a salvação. 2006, pp. 121-135.

Por Claudecir Bianco – 12/05/2010

Há diversas expressões da espiritualidade cristã, tantas quantas são as experiências que os crentes, nas mais diversas igrejas, têm de Deus e da vida em sua relação com Deus. Há também diversas explicações teológicas da espiritualidade. Aqui estará limitado pela ênfase na práxis missionária do povo de Deus. A experiência do Espírito na vida dos cristãos.

Deus sempre age em sua triunidade, e nenhuma das ações de Deus pode ser atribuída exclusivamente ao Pai, ao Filho ou ao Espírito Santo. Não cremos em três deuses, mas em um só, que é Trindade – Pai, Filho e Espírito Santo.

Outro erro a ser evitado é o de confundir a experiência do Espírito com os estados de espírito da pessoa. Sermos espirituais não pode ser definido como experimentarmos tal ou qual estado emocional, psíquico ou moral. Significa sermos vivificado, conduzidos, animados e plenificados pelo Espírito de Deus. E caberá a você, leitora ou leitor, a tarefa de vincular a discussão neste capítulo com as compreensões mais tipicamente tradicionais e eclesiais da vida no Espírito.

Experiência de Participação
A característica mais elementar e fundamental da experiência do Espírito é a de participação. Como tal, a experiência da participação é experiência de gratuidade divina, da graça (ou amor) de Deus derramada sobre a humanidade pecadora e sobre toda a criação.

No vocabulário neotestamentário, o termo mais comumente usado para participação é o termo comunhão (koinonia, em grego). Comunhão é “ser como um”.

O Espírito nos torna participantes de Deus porque é ele quem, como representante da Trindade, concretiza no crente a justificação, a regeneração, a santificação e a libertação. Todos esses termos são metáforas que descrevem cada um a sua maneira, destacando aspectos diferentes, a multiforme graça de Deus. Cada uma dessas metáforas traz uma ênfase específica, mas, no final das contas, todas são descrições parciais de uma mesma e magnífica realidade, que é o agir de Deus que nos coloca de volta na vida plena em comunhão com ele e com toda a sua criação, que nos torna participantes de sua própria vida e ação.

Nos escritos paulinos, a metáfora mais comum para a participação na divindade efetuada pelo Espírito em nós é a do “estar em Cristo”. Conforme diz Paulo: “Estou crucificado com Cristo; logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que, agora, tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim” (Gl 2.19-20). No evangelho de João, a noção da participação na divindade é descrita principalmente mediante a afirmação de que Deus Pai e Deus Filho tornam-se um naqueles que crêem, e vice-versa.

Nas teologias ocidentais (tanto católicas como protestantes), essa ênfase mística não tem sido muito ressaltada, especialmente por causa dos antigos debates sobre a doutrina da justificação pela fé. Entendida a justificação como um ato judicial de Deus que declara justa a pessoa que crê em Cristo. Se, porém, entendemos também a justificação como um ato real e transformador de Deus – tornando justa a pessoa que crê – recuperamos essa dimensão mística da experiência do Espírito, ou da vida cristã. Com isso, damos à palavra mística um novo sentido, não mais uma questão de experiências emocionais e privativas intensas, mas a plena e real participação na obra de Deus.

Tendo sido feitos participantes dele, também somos tornados participantes de um novo povo, de uma nova comunidade – a que costumamos chamar de igreja, o povo de Deus.

A experiência do Espírito é uma experiência de nos tornar participantes, em Cristo, do povo de Deus. A nova comunidade a que pertencemos é comunidade de adoração a Deus – no culto, na vida e na missão; é comunidade cuja natureza é agir de forma semelhante a Jesus Cristo, seu cabeça e seu rei.

Um erro é deixar de perceber que a igreja não é o ponto de chegada do agir de Deus.

A igreja não é um fim em si mesma; ela é o meio de Deus para a salvação de toda a humanidade.

A salvação não abrange só a humanidade, mas também toda a criação. A experiência do Espírito não nos tira do mundo, mas nos torna parceiros de Deus na libertação de toda a criação, tornando-nos participantes da nova criação de Deus, o que podemos chamar de dimensão ecológica da salvação. Durante muito tempo se falou da salvação como ser salvos do mundo, mas é preciso também falar da salvação como ser salvos com o mundo – se entendemos o mundo como a criação divina. A experiência do Espírito nos coloca, enfim, em comunhão com Deus, com o povo de Deus, com a humanidade e com toda a criação que geme e clama, ansiando pela salvação ofertada graciosamente por Deus em Cristo Jesus.

Tudo isso aponta para um objetivo: participamos de Deus para sermos co-missionários com ele na salvação de todo o cosmo, de toda criação. Participamos de Deus para sermos co-enviados com o Filho de Deus para a libertação de toda criação. Participamos de Deus para que Cristo reine sobre toda a criação.

Experiência de Liberdade
Verbos que descrevem a ação de Deus: ele vê, ouve, conhece, desse para fazer subir, e envia Moisés para libertar o povo do Egito. Libertar é uma ação pessoal de Deus, que se torna solidário com o povo e com a pessoa oprimida/escravizada, e modifica essa situação.

A experiência da libertação, concretizada pelo Espírito em nós, é a experiência de nos unirmos a Cristo, de participarmos com ele na ação libertadora do Deus trino e uno.

Repare na integridade da ação libertadora na nova vida do ser humano: ela inclui a dimensão físico-corpórea, a dimensão corpóreo-espiritual, a dimensão psíquica, a dimensão social, a política e a dimensão cósmica.

1- Somos libertos para ser livres
É mais fácil nos conformarmos com o mundo do que sermos transformados por Deus para transformar o mundo. “Para a liberdade foi que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos submetais, de novo, a jugo de escravidão” (Gl 5.1).

Somos livres em relação ao pecado para o amor – quem foi liberto do pecado transformou-se em escravo de Cristo, escravo da liberdade, escravidão que é, paradoxalmente, liberdade – pois, livres do pecado, estamos sujeitos a Deus, em Cristo Jesus (cf Rm 6).

Viver no Espírito é resistir contra toda dominação e escravidão, livres para participar de Deus em sua ação missisonária no mundo.

2- Somos libertos para ser santos
Pecado e carne são termos técnicos de Paulo para descrever a condição humana (e de toda a criação) de escravos da morte, do reino das trevas, do pecado ou da carne. A libertação, por sua vez, é o mais poderoso ato de Deus em relação a sua criação escravizada. O Espírito concretiza em nós a libertação de Deus em Cristo. Pecado não pode ser entendido apenas como os atos pecaminosos que cometemos, mas como uma estrutura de vida a que estamos submetidos. É mais fácil viver na carne do que viver em santidade.

Santidade é uma expressão da liberdade em Cristo, mas quantas vezes o povo de Deus confundiu santidade com escravidão – com legalismo!
Até hoje há cristãos que confundem santidade com moralismo; santidade com religiosidade; santidade com obediência às regras da instituição eclesiástica. Santidade é a manifestação da liberdade de vivermos de forma semelhante a Jesus Cristo.

Experiência de Conflitividade Escatológica
A experiência do Espírito, que é de participação e liberdade, também é de conflitividade escatológica. Segundo o Novo Testamento, já vivemos no fim dos tempos. Nesse tempo escatológico, a experiência do Espírito é experiência de primícias e de penhor. Como experiência escatológica, nossa participação em Deus e a nossa liberdade no Espírito ainda não são vivenciadas em sua plenitude – por isso, ainda pecamos, ainda sofremos, ainda gememos, ainda duvidamos, ainda lutamos. Por isso, a experiência do Espírito é experiência de conflitividade. O grande inimigo da experiência do Espírito em nós é a carne.

Carne, na teologia paulina, não é o corpo humano, mas a disposição humana de viver longe da comunhão com Deus, fora do reino de Deus, distante do amor divino. Todo ser humano sem Cristo vive na carne, dela é escravo, a ela serve e dela recebe a morte como recompensa.

A espiritualidade cristã é, primordialmente, uma vida cotidiana de conflito entre o Espírito de Deus e a carne. Essa é a mística cristã, a mística da entrega total, da plena rendição da pessoa à direção do Espírito, porque o querer humano, mesmo o do crente, é impotente contra o pecado e a carne (Rm 7.14-24). Ser espiritual não é ser fraco, resignado, entregue aos desejos carnais do pecado. Ser espiritual é ser uma pessoa firme, resistente; pessoa que, na força do Espírito Santo, resiste a todos os apelos de volta à escravidão da vida sem Deus.

Essa conflitividade é pessoal, é comunitária e cósmica. A experiência cristã no Espírito não nos separa do mundo.

Um cristão carnal é uma pessoa que, tendo conhecido a Cristo, anula e apaga o Espírito de Deus em sua vida, entregando-se a carne para viver o estilo de vida deste mundo. Um cristão espiritual é, ao contrário, uma pessoa que se entrega ao Espírito, dá liberdade ao Espírito, em sua vida, para agir e transformá-la em conformidade com o caráter de Cristo. Um cristão espiritual é sempre uma pessoa missionária, que constantemente ora, estuda a Palavra, adora a Deus e, na comunhão do povo de Deus, sob a força do Espírito Santo, combate o bom combate, vivendo de forma santa, justa e piedosa no mundo, dando sempre testemunho de Jesus Cristo em tudo o que faz.

Experiência de Transformação Pessoal
Na teoria, todos os seres humanos são iguais, mas, na prática de sociedade capitalista, por exemplo, são dignas somente as pessoas que têm, que compram e vendem, que participam do mercado, que “aproveitam as oportunidades”, que são vencedoras. Em alguns casos, a própria fé cristã é usada como instrumento dessa desumanização – e também por isso precisamos compreender bem o que significa ser transformados pelo Espírito, sermos novas pessoas, pessoas santificadas, separadas.

Tomar a cruz e seguir Jesus não pode ser entendido como anulação da humanidade, como desprezo pelo corpo, como transformação da pessoa em objeto, nem como rendição a qualquer poder humano que se apresente como atraente e salvador – significa, sim, construir um estilo de vida semelhante ao de Jesus Cristo. Fazer morrer a natureza terrena não é anular e mortificar o corpo, mas lutar contra a carne e contra o pecado.

No Espírito, a vida humana encontra sua verdadeira dignidade, seus verdadeiros propósitos, sua verdadeira energia.

Um erro comum em alguns sistemas teológicos é confundir a vida no Espírito com a vida sem corpo, uma vida incorpórea, como se nos tornássemos anjos após a conversão. Pelo contrário, a experiência do Espírito é experiência do corpo, no corpo, para o corpo humano. Outro erro comum é confundir a santidade com a repressão dos prazeres legítimos do corpo humano – como os prazeres advindos da comida, do esporte, do lazer, do sexo, da música, das artes, etc.

Corpo santificado é corpo dignificado para também sentir prazer, viver em prazer, desfrutar de todas as coisas boas criadas por Deus.

Corpo santificado é o corpo da pessoa que sabe discernir entre as coisas que convêm e as que não; entre as que edificam e as que não edificam – ética da liberdade e da responsabilidade.
Viver humanamente, com dignidade e honra, é viver para concretizar a vontade de Deus em benefício de toda criação, é vida missionária. É viver como cidadã e cidadão do Reino de Deus que, em tudo o que faz, dá testemunho do Reino de Deus – em casa, no trabalho, no lazer, no estudo, na política, etc.

Experiência de Criatividade Sociocultural
Um erro derivado do individualismo moderno é a separação entre vida pessoal e vida social. Uma vida digna, plena, não pode ser vivida individualisticamente. Todo ser humano vive em sociedade, e viver transformadamente é, também, viver transformadoramente. A vida em sociedade possui múltiplas dimensões: social, cultural, econômica, política. A experiência do Espírito nos capacita a viver criativamente em todas essas dimensões. Ser cidadão da cidade celestial não anula a nossa cidadania terrena; ao contrário, permite com que cada cristã e cristão viva de forma mais intensa, democrática e justa a sua cidadania, torne-se responsável por seu país e povo e vivencie os valores de uma nova sociedade, na qual as divisões e barreiras produzidas pelo pecado não mais tenham lugar – cidadania que resiste contra todos os sexismos, racismos, classismos e quaisquer ideologias que impeçam que cada pessoa tenha vida plenamente digna. A experiência do Espírito é experiência que nos convoca à participação na vida política sob a ótica da justiça, a fim de que as instituições e estruturas do Estado estejam efetivamente a serviço do povo.

A experiência do Espírito nos possibilita viver com liberdade e solidariedade. Quem vive no Espírito não serve a Mamon, nem fica preocupado com o sustento e o dia de amanhã, pois sabe que Deus é o sustentador de toda a sua criação. A experiência do Espírito nos conduz a uma vida economicamente simples, baseada na dignidade e na solidariedade. Em relação à dimensão cultural, a experiência do Espírito estimula toda a criatividade humana para construir valores, imagens, símbolos, arte, literatura, dança, enfim, todas as expressões culturais legítimas que podem ser meios de humanização e também de comunicação do evangelho.

Leva o povo de Deus a valorizar a diversidade cultural e usá-la para vivenciar os valores do reino de Deus expressando-os das mais variadas formas culturais possíveis. Contextualização e inculturação são os termos que, na teologia da missão, têm sido usados para descrever a dimensão cultural da missão do povo de Deus.

Mas nos convocam, também, a inculturar o evangelho de forma justa e santa, de modo que possamos construir formas culturais cada vez mais cheias da luz de Cristo.

Para Concluir:-
Esses critérios devem nortear toda a nossa busca por vida espiritual, por vida em plenitude, por santidade, por espiritualidade. Não é papel da teologia legislar sobre como deve ser a vida cristã de cada um em seus detalhes – mas é papel da teologia ajudar cada cristão a viver a experiência do Espírito com autenticidade e fidelidade ao Deus que se nos revela em Cristo e na Escritura. Viver no Espírito dura toda a vida do crente. De fato, dura por toda a eternidade.

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Muito interessante esse texto de Julio Zabatiero. Da mesma forma como é esclarecedor é também muito prático. Com a característica que lhe é peculiar (a clareza) Zabatiero escreve pontos já conhecidos, porém com afirmações objetivas e exemplos diretos. Ao aportar e escrever sobre alguns erros, o autor nos despertar para refletirmos em tantos outros erros presentes nas mais diversas igrejas e denominações.

Daí podemos pensar: O que estaria acontecendo com a Cristandade, de forma geral? Algumas respostas me passam à mente. Muitos estão interpretando as escrituras da forma como lhe convêm, outros a interpretam com muita superficialidade. Ainda outros, que não querem nem ler, muito menos interpretar, a partir daí “qualquer” interpretação lhe serve.

Se a igreja e seus membros continuarem por não estudarem a bíblica, com tempo e profundidade, com certeza em pouco tempo teremos que corrigir muitos outros pensamentos e ações equivocadas e erradas dessas pessoas que querem viver um evangelho de facilidades.

Poucos buscam ter “experiências” com o Espírito Santo. Porém muitos querem benefícios e até determinados dons, mas sem muitos esforços. Quando o autor fala das experiências, não são as reações dos fiéis em determinados cultos, mas na continuidade do culto na segunda, terça, quarta... Não são alguns minutos de euforia, mas são dias, meses, anos, buscando incessantemente ser cheios do Espírito de Deus, como diz Paulo em Efésios 5.18 “E não vos embriagueis com vinho, no qual há dissolução, mas enchei-vos do Espírito.” À medida que vamos procurando, com humildade e sinceridade, ser cheios do Espírito Santo, somos guiados por Ele, nos esvaziamos de nós mesmo.

Meu querer, meus desejos ficam num segundo plano.
Há realmente a transformação que o autor afirma.
Há a libertação.
E nesta transformação e liberdade, somos conduzidos a frutificar e servir ao Senhor com alegria.
Se isso não ocorre na vida do crente, mais um erro ele deve procurar esclarecer: Será que realmente entreguei minha vida para Jesus?

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