quarta-feira, 12 de maio de 2010

Reflexão teológica sobre o texto: Como vivemos a salvação

ZABATIERO, J. P. T. (org.) Curso Vida Nova de Teologia Básica. Teologia Sistemática. – Como vivemos a salvação. 2006, pp. 121-135.

Por Claudecir Bianco – 12/05/2010

Há diversas expressões da espiritualidade cristã, tantas quantas são as experiências que os crentes, nas mais diversas igrejas, têm de Deus e da vida em sua relação com Deus. Há também diversas explicações teológicas da espiritualidade. Aqui estará limitado pela ênfase na práxis missionária do povo de Deus. A experiência do Espírito na vida dos cristãos.

Deus sempre age em sua triunidade, e nenhuma das ações de Deus pode ser atribuída exclusivamente ao Pai, ao Filho ou ao Espírito Santo. Não cremos em três deuses, mas em um só, que é Trindade – Pai, Filho e Espírito Santo.

Outro erro a ser evitado é o de confundir a experiência do Espírito com os estados de espírito da pessoa. Sermos espirituais não pode ser definido como experimentarmos tal ou qual estado emocional, psíquico ou moral. Significa sermos vivificado, conduzidos, animados e plenificados pelo Espírito de Deus. E caberá a você, leitora ou leitor, a tarefa de vincular a discussão neste capítulo com as compreensões mais tipicamente tradicionais e eclesiais da vida no Espírito.

Experiência de Participação
A característica mais elementar e fundamental da experiência do Espírito é a de participação. Como tal, a experiência da participação é experiência de gratuidade divina, da graça (ou amor) de Deus derramada sobre a humanidade pecadora e sobre toda a criação.

No vocabulário neotestamentário, o termo mais comumente usado para participação é o termo comunhão (koinonia, em grego). Comunhão é “ser como um”.

O Espírito nos torna participantes de Deus porque é ele quem, como representante da Trindade, concretiza no crente a justificação, a regeneração, a santificação e a libertação. Todos esses termos são metáforas que descrevem cada um a sua maneira, destacando aspectos diferentes, a multiforme graça de Deus. Cada uma dessas metáforas traz uma ênfase específica, mas, no final das contas, todas são descrições parciais de uma mesma e magnífica realidade, que é o agir de Deus que nos coloca de volta na vida plena em comunhão com ele e com toda a sua criação, que nos torna participantes de sua própria vida e ação.

Nos escritos paulinos, a metáfora mais comum para a participação na divindade efetuada pelo Espírito em nós é a do “estar em Cristo”. Conforme diz Paulo: “Estou crucificado com Cristo; logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que, agora, tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim” (Gl 2.19-20). No evangelho de João, a noção da participação na divindade é descrita principalmente mediante a afirmação de que Deus Pai e Deus Filho tornam-se um naqueles que crêem, e vice-versa.

Nas teologias ocidentais (tanto católicas como protestantes), essa ênfase mística não tem sido muito ressaltada, especialmente por causa dos antigos debates sobre a doutrina da justificação pela fé. Entendida a justificação como um ato judicial de Deus que declara justa a pessoa que crê em Cristo. Se, porém, entendemos também a justificação como um ato real e transformador de Deus – tornando justa a pessoa que crê – recuperamos essa dimensão mística da experiência do Espírito, ou da vida cristã. Com isso, damos à palavra mística um novo sentido, não mais uma questão de experiências emocionais e privativas intensas, mas a plena e real participação na obra de Deus.

Tendo sido feitos participantes dele, também somos tornados participantes de um novo povo, de uma nova comunidade – a que costumamos chamar de igreja, o povo de Deus.

A experiência do Espírito é uma experiência de nos tornar participantes, em Cristo, do povo de Deus. A nova comunidade a que pertencemos é comunidade de adoração a Deus – no culto, na vida e na missão; é comunidade cuja natureza é agir de forma semelhante a Jesus Cristo, seu cabeça e seu rei.

Um erro é deixar de perceber que a igreja não é o ponto de chegada do agir de Deus.

A igreja não é um fim em si mesma; ela é o meio de Deus para a salvação de toda a humanidade.

A salvação não abrange só a humanidade, mas também toda a criação. A experiência do Espírito não nos tira do mundo, mas nos torna parceiros de Deus na libertação de toda a criação, tornando-nos participantes da nova criação de Deus, o que podemos chamar de dimensão ecológica da salvação. Durante muito tempo se falou da salvação como ser salvos do mundo, mas é preciso também falar da salvação como ser salvos com o mundo – se entendemos o mundo como a criação divina. A experiência do Espírito nos coloca, enfim, em comunhão com Deus, com o povo de Deus, com a humanidade e com toda a criação que geme e clama, ansiando pela salvação ofertada graciosamente por Deus em Cristo Jesus.

Tudo isso aponta para um objetivo: participamos de Deus para sermos co-missionários com ele na salvação de todo o cosmo, de toda criação. Participamos de Deus para sermos co-enviados com o Filho de Deus para a libertação de toda criação. Participamos de Deus para que Cristo reine sobre toda a criação.

Experiência de Liberdade
Verbos que descrevem a ação de Deus: ele vê, ouve, conhece, desse para fazer subir, e envia Moisés para libertar o povo do Egito. Libertar é uma ação pessoal de Deus, que se torna solidário com o povo e com a pessoa oprimida/escravizada, e modifica essa situação.

A experiência da libertação, concretizada pelo Espírito em nós, é a experiência de nos unirmos a Cristo, de participarmos com ele na ação libertadora do Deus trino e uno.

Repare na integridade da ação libertadora na nova vida do ser humano: ela inclui a dimensão físico-corpórea, a dimensão corpóreo-espiritual, a dimensão psíquica, a dimensão social, a política e a dimensão cósmica.

1- Somos libertos para ser livres
É mais fácil nos conformarmos com o mundo do que sermos transformados por Deus para transformar o mundo. “Para a liberdade foi que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos submetais, de novo, a jugo de escravidão” (Gl 5.1).

Somos livres em relação ao pecado para o amor – quem foi liberto do pecado transformou-se em escravo de Cristo, escravo da liberdade, escravidão que é, paradoxalmente, liberdade – pois, livres do pecado, estamos sujeitos a Deus, em Cristo Jesus (cf Rm 6).

Viver no Espírito é resistir contra toda dominação e escravidão, livres para participar de Deus em sua ação missisonária no mundo.

2- Somos libertos para ser santos
Pecado e carne são termos técnicos de Paulo para descrever a condição humana (e de toda a criação) de escravos da morte, do reino das trevas, do pecado ou da carne. A libertação, por sua vez, é o mais poderoso ato de Deus em relação a sua criação escravizada. O Espírito concretiza em nós a libertação de Deus em Cristo. Pecado não pode ser entendido apenas como os atos pecaminosos que cometemos, mas como uma estrutura de vida a que estamos submetidos. É mais fácil viver na carne do que viver em santidade.

Santidade é uma expressão da liberdade em Cristo, mas quantas vezes o povo de Deus confundiu santidade com escravidão – com legalismo!
Até hoje há cristãos que confundem santidade com moralismo; santidade com religiosidade; santidade com obediência às regras da instituição eclesiástica. Santidade é a manifestação da liberdade de vivermos de forma semelhante a Jesus Cristo.

Experiência de Conflitividade Escatológica
A experiência do Espírito, que é de participação e liberdade, também é de conflitividade escatológica. Segundo o Novo Testamento, já vivemos no fim dos tempos. Nesse tempo escatológico, a experiência do Espírito é experiência de primícias e de penhor. Como experiência escatológica, nossa participação em Deus e a nossa liberdade no Espírito ainda não são vivenciadas em sua plenitude – por isso, ainda pecamos, ainda sofremos, ainda gememos, ainda duvidamos, ainda lutamos. Por isso, a experiência do Espírito é experiência de conflitividade. O grande inimigo da experiência do Espírito em nós é a carne.

Carne, na teologia paulina, não é o corpo humano, mas a disposição humana de viver longe da comunhão com Deus, fora do reino de Deus, distante do amor divino. Todo ser humano sem Cristo vive na carne, dela é escravo, a ela serve e dela recebe a morte como recompensa.

A espiritualidade cristã é, primordialmente, uma vida cotidiana de conflito entre o Espírito de Deus e a carne. Essa é a mística cristã, a mística da entrega total, da plena rendição da pessoa à direção do Espírito, porque o querer humano, mesmo o do crente, é impotente contra o pecado e a carne (Rm 7.14-24). Ser espiritual não é ser fraco, resignado, entregue aos desejos carnais do pecado. Ser espiritual é ser uma pessoa firme, resistente; pessoa que, na força do Espírito Santo, resiste a todos os apelos de volta à escravidão da vida sem Deus.

Essa conflitividade é pessoal, é comunitária e cósmica. A experiência cristã no Espírito não nos separa do mundo.

Um cristão carnal é uma pessoa que, tendo conhecido a Cristo, anula e apaga o Espírito de Deus em sua vida, entregando-se a carne para viver o estilo de vida deste mundo. Um cristão espiritual é, ao contrário, uma pessoa que se entrega ao Espírito, dá liberdade ao Espírito, em sua vida, para agir e transformá-la em conformidade com o caráter de Cristo. Um cristão espiritual é sempre uma pessoa missionária, que constantemente ora, estuda a Palavra, adora a Deus e, na comunhão do povo de Deus, sob a força do Espírito Santo, combate o bom combate, vivendo de forma santa, justa e piedosa no mundo, dando sempre testemunho de Jesus Cristo em tudo o que faz.

Experiência de Transformação Pessoal
Na teoria, todos os seres humanos são iguais, mas, na prática de sociedade capitalista, por exemplo, são dignas somente as pessoas que têm, que compram e vendem, que participam do mercado, que “aproveitam as oportunidades”, que são vencedoras. Em alguns casos, a própria fé cristã é usada como instrumento dessa desumanização – e também por isso precisamos compreender bem o que significa ser transformados pelo Espírito, sermos novas pessoas, pessoas santificadas, separadas.

Tomar a cruz e seguir Jesus não pode ser entendido como anulação da humanidade, como desprezo pelo corpo, como transformação da pessoa em objeto, nem como rendição a qualquer poder humano que se apresente como atraente e salvador – significa, sim, construir um estilo de vida semelhante ao de Jesus Cristo. Fazer morrer a natureza terrena não é anular e mortificar o corpo, mas lutar contra a carne e contra o pecado.

No Espírito, a vida humana encontra sua verdadeira dignidade, seus verdadeiros propósitos, sua verdadeira energia.

Um erro comum em alguns sistemas teológicos é confundir a vida no Espírito com a vida sem corpo, uma vida incorpórea, como se nos tornássemos anjos após a conversão. Pelo contrário, a experiência do Espírito é experiência do corpo, no corpo, para o corpo humano. Outro erro comum é confundir a santidade com a repressão dos prazeres legítimos do corpo humano – como os prazeres advindos da comida, do esporte, do lazer, do sexo, da música, das artes, etc.

Corpo santificado é corpo dignificado para também sentir prazer, viver em prazer, desfrutar de todas as coisas boas criadas por Deus.

Corpo santificado é o corpo da pessoa que sabe discernir entre as coisas que convêm e as que não; entre as que edificam e as que não edificam – ética da liberdade e da responsabilidade.
Viver humanamente, com dignidade e honra, é viver para concretizar a vontade de Deus em benefício de toda criação, é vida missionária. É viver como cidadã e cidadão do Reino de Deus que, em tudo o que faz, dá testemunho do Reino de Deus – em casa, no trabalho, no lazer, no estudo, na política, etc.

Experiência de Criatividade Sociocultural
Um erro derivado do individualismo moderno é a separação entre vida pessoal e vida social. Uma vida digna, plena, não pode ser vivida individualisticamente. Todo ser humano vive em sociedade, e viver transformadamente é, também, viver transformadoramente. A vida em sociedade possui múltiplas dimensões: social, cultural, econômica, política. A experiência do Espírito nos capacita a viver criativamente em todas essas dimensões. Ser cidadão da cidade celestial não anula a nossa cidadania terrena; ao contrário, permite com que cada cristã e cristão viva de forma mais intensa, democrática e justa a sua cidadania, torne-se responsável por seu país e povo e vivencie os valores de uma nova sociedade, na qual as divisões e barreiras produzidas pelo pecado não mais tenham lugar – cidadania que resiste contra todos os sexismos, racismos, classismos e quaisquer ideologias que impeçam que cada pessoa tenha vida plenamente digna. A experiência do Espírito é experiência que nos convoca à participação na vida política sob a ótica da justiça, a fim de que as instituições e estruturas do Estado estejam efetivamente a serviço do povo.

A experiência do Espírito nos possibilita viver com liberdade e solidariedade. Quem vive no Espírito não serve a Mamon, nem fica preocupado com o sustento e o dia de amanhã, pois sabe que Deus é o sustentador de toda a sua criação. A experiência do Espírito nos conduz a uma vida economicamente simples, baseada na dignidade e na solidariedade. Em relação à dimensão cultural, a experiência do Espírito estimula toda a criatividade humana para construir valores, imagens, símbolos, arte, literatura, dança, enfim, todas as expressões culturais legítimas que podem ser meios de humanização e também de comunicação do evangelho.

Leva o povo de Deus a valorizar a diversidade cultural e usá-la para vivenciar os valores do reino de Deus expressando-os das mais variadas formas culturais possíveis. Contextualização e inculturação são os termos que, na teologia da missão, têm sido usados para descrever a dimensão cultural da missão do povo de Deus.

Mas nos convocam, também, a inculturar o evangelho de forma justa e santa, de modo que possamos construir formas culturais cada vez mais cheias da luz de Cristo.

Para Concluir:-
Esses critérios devem nortear toda a nossa busca por vida espiritual, por vida em plenitude, por santidade, por espiritualidade. Não é papel da teologia legislar sobre como deve ser a vida cristã de cada um em seus detalhes – mas é papel da teologia ajudar cada cristão a viver a experiência do Espírito com autenticidade e fidelidade ao Deus que se nos revela em Cristo e na Escritura. Viver no Espírito dura toda a vida do crente. De fato, dura por toda a eternidade.

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Muito interessante esse texto de Julio Zabatiero. Da mesma forma como é esclarecedor é também muito prático. Com a característica que lhe é peculiar (a clareza) Zabatiero escreve pontos já conhecidos, porém com afirmações objetivas e exemplos diretos. Ao aportar e escrever sobre alguns erros, o autor nos despertar para refletirmos em tantos outros erros presentes nas mais diversas igrejas e denominações.

Daí podemos pensar: O que estaria acontecendo com a Cristandade, de forma geral? Algumas respostas me passam à mente. Muitos estão interpretando as escrituras da forma como lhe convêm, outros a interpretam com muita superficialidade. Ainda outros, que não querem nem ler, muito menos interpretar, a partir daí “qualquer” interpretação lhe serve.

Se a igreja e seus membros continuarem por não estudarem a bíblica, com tempo e profundidade, com certeza em pouco tempo teremos que corrigir muitos outros pensamentos e ações equivocadas e erradas dessas pessoas que querem viver um evangelho de facilidades.

Poucos buscam ter “experiências” com o Espírito Santo. Porém muitos querem benefícios e até determinados dons, mas sem muitos esforços. Quando o autor fala das experiências, não são as reações dos fiéis em determinados cultos, mas na continuidade do culto na segunda, terça, quarta... Não são alguns minutos de euforia, mas são dias, meses, anos, buscando incessantemente ser cheios do Espírito de Deus, como diz Paulo em Efésios 5.18 “E não vos embriagueis com vinho, no qual há dissolução, mas enchei-vos do Espírito.” À medida que vamos procurando, com humildade e sinceridade, ser cheios do Espírito Santo, somos guiados por Ele, nos esvaziamos de nós mesmo.

Meu querer, meus desejos ficam num segundo plano.
Há realmente a transformação que o autor afirma.
Há a libertação.
E nesta transformação e liberdade, somos conduzidos a frutificar e servir ao Senhor com alegria.
Se isso não ocorre na vida do crente, mais um erro ele deve procurar esclarecer: Será que realmente entreguei minha vida para Jesus?

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Reflexão teológica sobre o texto: A Igreja na Teologia Reformada do Século Dezesseis

MCNEILL, J. T. Grandes temas da tradição reformada – A Igreja na Teologia Reformada do Século Dezesseis. São Paulo: Pendão Real, 1998, pp. 150-159.

Por Claudecir Bianco – 06/05/2010

Os fundadores do protestantismo não se propuseram somente a um reavivamento da piedade pessoal: também era seu objetivo reestruturar formas corporativas de religião. Eles não buscaram converter indivíduos à fé protestante somente para deixá-los numa situação de isolamento solitário; trabalharam para reedificar a Igreja e sentiram-se profundamente chamados a serem agentes desta restauração.

A eclesiologia é uma parte proeminente e essencial de sua teologia.

Antes da Segunda Guerra Mundial, teólogos historiadores do continente europeu estiveram examinando a eclesiologia dos reformadores, com crescente entusiasmo e atenção aos detalhes.

A substância deste trabalho deriva das declarações de reconhecidos líderes do ramo reformado do protestantismo e, neste campo, se restringe às passagens mais características dos trabalhos de Zuínglio, Bullinger, Calvino e Zanchius.

No pensamento dos teólogos reformados, luteranos e calvinistas, como também no de Agostinho, o conceito de Igreja se move dentro de uma elipse cujos focos são a perfeição celestial e a imperfeição humana.

No primeiro debate de Zurique (1523), Zuínglio afirma que a verdadeira Igreja não é terrestre, mas espiritual, “a noiva sem mácula de Jesus Cristo, governada e animada pelo Espírito de Deus”. No seu Tratado Sobre a Verdadeira e a Falsa Religião (1525), ao analisar a Igreja de Cristo, destaca que ela não é a hierarquia, mas o povo cristão.

Ao lado do corpo defeituoso e empírico dos que professam a fé, Zuínglio coloca o que ele chama de “uma segunda espécie de Igreja”, que consiste daqueles que são verdadeiramente fiéis e que é “a Igreja gloriosa e nobre, a esposa de Cristo, sem qualquer mácula ou ruga”.

Cada uma das igrejas em particular tem autoridade disciplinar sobre seus membros, “mas todas estas igrejas são uma só Igreja, a esposa de Cristo, que os gregos denominam católica e nós, universal.

Em 1530, Zuínglio apresentou uma declaração de suas crenças a Carlos V – Fidei ratio (“Uma justificativa da fé”). Ele distinguiu os diversos significados da palavra Igreja nas Escrituras: 1- a Igreja exclusiva dos eleitos que é conhecida unicamente por Deus; 2- a Igreja universal perceptível (universalis sensibilis eclésia) dos cristãos nominais ou professantes (os quais, porém, são algumas vezes denominados os “eleitos”, como em 1 Pedro 1.1-2); 3- cada congregação local da Igreja universal e visível. A última, quando mantém a verdadeira confissão, é uma só por toda parte e inclui as crianças batizadas.

O texto “Pequena e Clara Exposição da Fé Cristã”, dirigido a Francisco I, em 1531, contém uma breve declaração a respeito da Igreja. Aqui, seu pensamento gira ao redor das palavras invisível e visível, bem como da relação entre a Igreja e o estado. Os membros da Igreja invisível são conhecidos somente por Deus e por si mesmos. A Igreja visível não é a romana, mas a de todos os cristãos batizados. Visto que alguns destes membros rebeldes e traidores, indiferentes às censuras da Igreja, há necessidade de um governo temporal para reprimir tais pecadores.

Bullinger segue e, em alguns pontos, expande o ensino de Zuínglio sobre a Igreja. Nas “Décadas” (1549-51), Bullinger, citando Cipriano, Agostinho, Gregório, o Grande, Pascásio, Leão, o Grande, e Tomás de Aquino, a respeito da omissão da palavra em na afirmação do credo: “Creio na santa Igreja católica”, interpreta que a cláusula significa que “devemos conhecer e confessar a Santa Igreja Católica”.

A Igreja de Cristo “se estende por toda a extensão do mundo e por todas as épocas, contendo todos os fiéis, desde o primeiro Adão até o realmente último santo”.
A Quinta Década de Bullinger (1551) constitui um extenso tratado a respeito da Igreja. “A Igreja Católica” e contém os principais elementos de sua eclesiologia. Ele descreve a igreja como “toda a companhia e multidão dos fiéis”.

Esta Igreja é normalmente denominada católica, isto é, universal. Pois ela estende seus ramos por todos os lugares do vasto mundo, em todos os tempos de todas as épocas; e em geral compreende todos dos fiéis do mundo todo. Bullinger distingue a Igreja triunfante da militante, lutando contra o pecado no mundo- como os “membros vivos” da interna e invisível Igreja de Deus, como nós professamos no Credo, e – como a Igreja “externa e visível” dos que professam a verdadeira religião, alguns dos quais são infiéis.

Muitos aspectos subordinados da doutrina são mencionados neste sermão. Ele termina com uma seção devota à questão do poder da Igreja – o poder para ordenar ministros, para ensinar a verdadeira doutrina, para atar e destacar, parar administrar os sacramentos e avaliar as doutrinas. Bullinger redige aqui um esboço da doutrina do poder da Igreja que viria para ser elaborada na teologia reformada posterior.
Como os outros reformadores, Bullinger enfatiza o amor que une os membros da Igreja em uma íntima comunhão, destacando passagens do Novo Testamento a respeito da caridade ou amor.

Bullinger adverte contra cismas por diversidade de opiniões que não afetam a doutrina fundamental, por infrações de ministros, por diversidade de cerimônias e por mau comportamento de membros particulares, mas justifica a saída de uma instituição na qual as obras internas e externas da verdadeira Igreja estejam ausentes. Juntamente com isto, ele enfatiza o senhorio único de Cristo sobre sua Igreja.

Em sua Instrução aos Protestantes da Bavaria (1559), Bullinger responde a uma série de questões com uma abordagem sobre as marcas da verdadeira Igreja, a Palavra e os sacramentos. Ele sustenta que a Igreja universal não está confinada no que diz respeito ao lugar e que não há salvação fora dela.

Ele desacredita a reivindicação baseada na sucessão episcopal e declara que a Igreja Romana sob o papa não é a Igreja católica universal.

Em resposta à questão a respeito de onde a verdadeira Igreja universal tem estado até agora, Bullinger aponta as igrejas gregas e oriental e os crentes separados de Roma sob o domínio turco e de outros opressores. Não há salvação fora da Igreja cristã, mas isto não pode ser dito a respeito da Igreja Romana. Ele encoraja a esperança da salvação de “nossos antepassados”.

Para mostrar a sobrevivência oculta da Igreja, Bullinger menciona a conhecida passagem de Elias e os sete mil em Israel.

O ensino de Calvino sobre a Igreja é caracteristicamente lúcido e abrangente. Exposição de seu pensamento maduro sobre “a Igreja, seu Governo, Ordens e Poderes”, que se estende através de dezenove dos vinte capítulos do Livro IV da edição de 1559, das Institutas. Como Lutero, Calvino identifica a expressão “Igreja católica” com a “comunhão dos santos” do Credo dos Apóstolos. “Ela não deve ser negligenciada porque expressa muito bem o caráter da Igreja, como se estivesse sendo dito que os santos estão unidos na comunhão de Cristo numa condição em que eles comungam mutuamente qualquer benefício que Deus lhes oferece”.

Segundo seu ponto de vista, por um lado, a Igreja é provida de membros por predestinação divina e, por outro lado, é uma assembléia ou comunidade em que os membros comungam mutuamente suas bênçãos.

Calvino distingue os dois sentidos contidos nos usos da Escritura da palavra Igreja. Em um sentido, significa a Igreja como Deus a vê, consistindo somente daqueles “que, por adoção e graça, são filhos de Deus e, pela santificação do Espírito, membros verdadeiros de Cristo.” No outro sentido escriturístico, a palavra designa “toda a multidão dispersa pelo mundo que professa adorar um só Deus e Jesus Cristo”, partilha os dois sacramentos e se conforma exteriormente à Igreja. Nesta Igreja visível existem muitos hipócritas, mas Calvino afirma a necessidade de comunhão com ela: “Portanto, assim como é necessário crer na Igreja que é invisível a nós, sendo conhecida somente por Deus, da mesma forma nos é ordenado que respeitemos e mantenhamos comunhão com esta Igreja, que é visível aos seres humanos”.

Calvino enfatiza com insistência a pecaminosidade do cisma. “Pois o Senhor estima tanto a comunhão de sua Igreja que ele considera como um traidor e apóstata da religião quem perversamente se retira de qualquer sociedade cristã que preserva o verdadeiro ministério da Palavra e os sacramentos”. O argumento de Calvino aqui leva à declaração enfática de que “sair da Igreja é renunciar a Deus e a Cristo” (Institutas, 4.1.10).

Na obra da salvação, do qual Calvino fala com entusiasmo: “Podemos aprender do título de Mãe como é útil e até mesmo necessário conhecê-la; visto que não existe outro caminho de entrada na vida, a menos que sejamos concebidos nela, nascidos nela, nutridos em seu seio e continuamente preservados sob seu cuidado e governo” (Institutas, 4.1.14). A edificação dos fiéis acontece “sob a educação da Igreja” (Institutas, 4.1.5).

Então, como a verdadeira Igreja visível é reconhecida? Onde quer que encontremos a Palavra de Deus puramente pregada e ouvida e os sacramentos administrados de acordo com a instituição de Cristo, aí, sem dúvida, está a Igreja de Deus. Ainda: onde a Palavra é ouvida com reverência e os sacramentos não são negligenciados, encontramos, quando for o caso, uma forma da Igreja, a qual não está sujeita a suspeição.

A diversidade de opinião a respeito dos pontos não essenciais de doutrina não deve ser causa de discórdia entre as igrejas. Somos tão propensos a ignorância que diferenças triviais não devem se tornar pretexto para abandono da Igreja. E, para suportarmos as imperfeições da vida devemos praticar muito mais a indulgência.
Condenar a fraqueza dos membros da Igreja é uma coisa; renunciar à comunhão da Igreja por causa disto é outra. A Igreja, não o indivíduo, tem autoridade para excomungar. Uma passagem forte de Cipriano é citada em defesa deste ponto de vista.

A Igreja é santa no sentido de que, diariamente, progride em direção à santidade: ela não chegou à perfeição.
Se estas inúmeras passagens tivessem sido observadas pelos mais intolerantes seguidores de Calvino, a história das igrejas reformadas poderia ter sido mais feliz do que foi.

Calvino observa que, no Credo, a “comunhão dos santos” é seguida, imediatamente, pela “remissão de pecados”, no que a graça de Deus é constantemente exercida para com os membros da comunidade.

Calvino também rejeita a reivindicação católica romana de que a igreja papal é a verdadeira e única Igreja. Ele afirma que aquela igreja deixou a Palavra e introduziu um culto impuro e idólatra. “A comunhão da Igreja não foi instituída como um vínculo para nos prender na idolatria, impiedade, ignorância de Deus e outros males”. Portanto, deixar a igreja de Roma não é um ato de divisão, mas uma necessidade espiritual.

Ele devota um importante capítulo (4.12) à disciplina corretiva da Igreja, que sustenta ser de primeira necessidade, como os músculos ou ligamentos que unem os membros do corpo. Pela disciplina “aqueles que caíram anteriormente podem ser punidos em misericórdia e com a brandura do espírito do cristianismo”. Calvino distingue o tratamento das ofensas privadas e notórias, bem como as delinqüências leves, para as quais a admoestação e a repreensão são suficientes, dos crimes graves, tais como o adultério, o furto, o roubo, a sedição e o perjúrio, pelos quais os transgressores devem ser excomungados.

A jurisdição disciplinar da Igreja se estende sobre todos, príncipes e plebeus, visto que, “os certos e os diademas dos reis” estão convenientemente sujeitos a Cristo (Institutas, 4.12.7).
“O desígnio da excomunhão é o de que o pecador seja trazido ao arrependimento”.
Mesmo aqueles que permanecem obstinados não devem ser “condenados à morte eterna” pela Igreja, a qual não pode estabelecer limites para a misericórdia de Deus (Institutas, 4.12.9).

Jerônimo Zanchius (Hieronymus Zanchius, 1516-90), um erudito italiano que lecionou em Estrasburgo e Heidelberg, foi muito influente entre os teólogos reformados depois da morte de Calvino.

Ele subscreveu a Confissão de Augsburgo – como explicou (1563) numa carta a Grindal – logrou contar com a aprovação de Calvino. Mais conciliador talvez do que a maior parte dos teólogos reformados, ele era realmente um discípulo de Calvino; suas obras podem ser melhor lidas como uma reafirmação da doutrina calvinista e, ao mesmo tempo, como uma introdução à era escolástica da teologia reformada.

Esta verdadeira Igreja consiste somente dos eleitos: hipócritas estão nela, mas não são dela. Zanchius considera a Igreja em suas três características: una, católica e santa. Ele expõe a doutrina da unidade da Igreja. Ela sempre foi e é um corpo, do qual Cristo foi feito a cabeça pelo Pai, e um espírito, pelo qual os membros se unem à cabeça. Ela tem uma fé, uma salvação e uma herança nos céus. Antes da vinda de Cristo, a Igreja se identificava com “aquela que existe agora e existirá até o fim do mundo”. Ela é una no que diz respeito aos tempos, aos lugares e às pessoas e, assim, “dizemos que ela é uma comunhão de todos os santos e sustentamos que foi estabelecida pela Sagrada Escritura, sendo que aqueles que se separam perpetuamente dela não pertencem a seu corpo”. A Igreja é também, em segundo lugar, santa. Ele afirma que ela é “verdadeiramente católica, isto é, universal”, porque a sua cabeça é católica e eterna, sendo que seus membros estão unidos a ela em todos os tempos e lugares, de todas as raças e nações.

Zanchius nada tem de peculiar, exceto, talvez, uma clareza de linguagem incomum que o diferencia dos outros teólogos reformados. A pura doutrina do evangelho é pregada, ouvida “e aceita com exclusividade”. O caminho seguido pela disciplina, exercida com caridade, é a admoestação privada e pública, a correção e, em casos extremos, a excomunhão.

Zanchius defende a doutrina da unidade na medida em que a pureza da doutrina é observada.
Deve-se empenhar mais pela unidade da Igreja católica em geral do que pela unidade da igreja em particular. Mas o rompimento com a igreja de Roma não é, por causa de sua apostasia um abandono da unidade do corpo de Cristo. Não pode haver nenhuma santidade e nenhuma salvação fora da Igreja católica de fé, mas este aspecto não está ligado a pessoas ou lugares específicos.

Estas passagens características oferecem alguma indicação a respeito dos elementos que integraram a exposição dos reformadores sobre a doutrina da Igreja. Eles sustentaram em comum uma concepção elevada da Igreja, como a agência divinamente ordenada pela qual as almas são “revivificadas” e santificadas. A Igreja é a santa esposa de Cristo e nesta condição, como diz Calvino, é mãe daqueles de quem Deus é Pai. Todos eles distinguiram, na Igreja, os aspectos de perfeição celestial e os aspectos de imperfeição terrena – a Igreja invisível e visível. Juntamente com os teólogos luteranos, eles negaram que a Igreja invisível é uma entidade imaginária, meramente uma espiritual República de Platão.

A tarefa da reforma da Igreja é manifestar a Igreja de Deus que está oculta.
Tanto invisível como visível, a verdadeira Igreja é “una, santa e católica”. É afirmado que a Igreja visível é católica e ecumênica. Espalhada por toda a terra, ela professa uma fé comum e conserva uma comunhão universal. A cabeça, Cristo, sendo uma, o corpo não pode ser uma pluralidade. Sua catolicidade e unidade dependem da cristocracia, e seu senhorio humano.

Não devemos ser impacientes com suas imperfeições e é um lamentável pecado sair da Igreja, enquanto ela conserva as marcas de sua realidade como Igreja.
A Igreja sobrevive a todos os ataques e tumultos, providenciando uma comunidade de filhos de Deus e servindo dinamicamente a causa do Reino de Deus no mundo, até o fim do drama terreno.

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Concordo com o autor ao afirmar que muitas ênfases sobre a Igreja estão sendo perdidas. Alias, em minha opinião, não é só assuntos como a eclesiologia que estão sendo “esquecidos” nos tempos atuais, vários assuntos que, no passado, corroboraram para uma fundamentação teológica sóbria, estão sendo deixados ao segundo plano.

Para grande parte dos Cristãos, os reformadores são totalmente desconhecidos. Falta até mesmo uma simples curiosidade para saber quem foram estes homens que ousaram se posicionar frente ao controle religioso e que promoveram este grandioso movimento.

Pessoas simples, muitos humildes, que nem mesmo salários recebiam, mas de uma coragem e fé que ainda hoje nos desafia. Muito mais do que o exemplo prático de vida destes reformadores, foi também suas habilidades em organizar de forma sistemática suas opiniões nos mais variados escritos, para que no futuro, sobre estes alicerces, pudéssemos fundamentar nossa opinião.

É um desafio, ler um texto como este apresentado por McNeill, e ter que resumir ainda mais essas maravilhosas reflexões. As argumentações aliadas às fundamentações que estes reformadores apresentam, soam como melodias aos nossos ouvidos. Por exemplo, as declarações de Calvino ao afirmar que “sair da Igreja é renunciar a Deus e a Cristo”, impressionam. Num tempo em muitos valores foram substituídos, a última coisa que uma pessoa poderia pensar seria essa, ou melhor, arrisco a dizer que ela nunca pensaria. Sempre teremos desculpas para fundamentar nossas tomadas de decisões. O problema sempre estará no outro.

Faço uso das palavras de Zanchius, apresentadas no texto, “quantos hipócritas estão na Igreja, mas não são dela”.
Devíamos cada um há seu tempo, perguntar como os discípulos, quando Jesus disse que um deles o iria trair:
“E eles, muitíssimo contristados, começaram um por um a perguntar-lhe: Porventura, sou eu, Senhor?” Mateus 26.22.

Porventura sou eu Senhor, que não amo Sua Igreja como estes bravos homens amaram?

Porventura sou eu Senhor, que ainda não sei viver uma vida como o Senhor ensinou?

Que o Senhor nos ajude a amar Sua Igreja.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Reflexão teológica sobre o texto: Do terror à esperança - Paradigmas para uma escatologia integral

ROLDÁN, A. F. Do terror à esperança – Paradigmas para uma escatologia integral. Londrina: Descoberta, 2001, pp. 77-100.

Por Claudecir Bianco – 04/05/2010

O milênio: dados bíblicos e ciência ficção
O propósito desse capítulo (3) consiste em apresentar as origens do milenarismo, os dados bíblicos sobre o tema e as escolas que se forjaram em torno ao milênio, seja a partir de uma interpretação literalista, seja a partir de uma compreensão simbólica. O capítulo finalizará com uma crítica a esse tipo de escatologia.

Origem do milenarismo
As investigações sérias realizadas no âmbito da apocalíptica coincidem em assimilar a origem judaica e intertestamentária do milenarismo, entendido como um período de mil anos de governo de Deus sobre a terra, antes do fim. Dentro do judaísmo, os rabinos falaram de uma época messiânica cuja duração era incerta. Alguns deles falavam de quarenta anos, como que rememorando o êxodo, outros falavam de quatrocentos anos, e, finalmente, alguns se referiam há mil anos.
O termo grego que é traduzido por “mil anos” e do qual vem o latim milenium é chília, razão pela qual o milenarismo também é chamado de quiliasmo. Essa palavra aparece somente em Apocalipse 20.2-7.

O fundamento bíblico para o milenarismo, entendido como mil anos de reinado literal de Jesus Cristo sobre a terra, é sumamente débil, no sentido de estar dentro de um contexto apocalíptico que, como tal, recorre permanentemente à simbologia numérica.

Os milenaristas oferecem muitas citações de textos do Antigo e do Novo Testamento para apoiar suas afirmações, mas se trata, certamente e como veremos, de extrapolações ou aplicações das idéias milenaristas e passagens bíblicas que não necessariamente se referem a esse período futuro de reinado de Jesus Cristo por mil anos, a partir de Jerusalém.

Desenvolvimento histórico do milenarismo
As idéias milenaristas, de alguma maneira, remontam a alguns Pais da Igreja que vislumbraram uma espécie de reinado literal de Jesus Cristo por mil anos sobre a terra. Mas um dos personagens chave foi Montano, que, em meados do século II, pretendendo ser um profeta de Deus, proclamou o tempo do Espírito Santo.
Eusébio de Cesaréia, primeiro historiador sistemático da igreja no século IV, interpretou o reinado de Constantino como o começo do milênio. Agostinho de Hipona, na primeira etapa de seu pensamento, subscreveu a idéia de um milênio literal. Depois mudou para uma idéia espiritual do milênio. Agostinho fala de duas maneiras que se podem interpretar os “mil anos”. Uma é entender que os mil anos correspondem ao “sexto milênio, como se fosse o sexto dia, do qual os últimos períodos estão transcorrendo agora”. A outra – e mais provável – de interpretar os mil anos é tomar essa cifra pelos anos totais desse mundo, citando com um número perfeito a plenitude do tempo.

Mais adiante, Agostinho, define melhor sua interpretação do milênio, dizendo: “Efetivamente, a igreja reina em companhia de Cristo agora.”

Mas a verdadeira reatualização do milenarismo veio com Joaquim de Fiore (1145-1202), fundador de um mosteiro em Fiore, uma aldeia da Calábria, na Itália. Joaquim proclamou a vinda da redenção com a vinda do Espírito Santo.

Lutero intuiu a proximidade do dia do juízo final. Ele identificava Babilônia com a Roma católica, e o papa com o Anticristo.

O mais enérgico e violento apocalíptico desse período da Reforma foi Tomás Müntzer, que pugnou por fazer cumprir a vontade de Deus e o Reino de Deus através da espada. Em uma apelação difundida em Praga em 1521, Müntzer instava a população a purificar a igreja usando até de violência física, no espírito do profeta Elias frente aos sacerdotes de Baal.

Mas o fim de Müntzer foi trágico, pois foi decapitado a 27 de maio de 1525.

Em nosso âmbito latino-americano, a influência das idéias milenaristas que se verificou na época das independências, quando foi publicada a obra do jesuíta chileno Manuel Lacunza.

Chama a atenção que um fundamento bíblico tão conciso tenha despertado tanto interesse através do tempo, gerando movimentos milenaristas de cunho mui diverso e, por outro lado, que o milênio se tenha transformado no eixo central a partir do qual foram elaboradas as distintas escolas escatológicas.

O pré-milenarismo dispensacionalista
Começamos com o pré-milenarismo dispensacionalista, influência no âmbito evangélico mundial, incluindo nosso contexto latino-americano. É uma variante moderna do pré-milenarismo. Seus começos remontam ao século XIX e ele foi construído a partir das idéias antigas dos Pais da Igreja em torno de um juízo final. Esse último pré-milenarismo é chamado precisamente de “pré-milenarismo histórico” pelo fato de remontar-se aos primeiros séculos da história da igreja. Deve ficar bem claro que nem todo milenarista é dispensacionalista, enquanto todo dispensacionalista, por definição, é pré-milenarista.
Darby, neto do famoso Almirante Nelson, fez uma reinterpretação da Bíblia a partir de “dispensações”, entendida como “economias” no sentido de diferentes tratos ou convênios de Deus com a humanidade.

Que afirmação faz o dispensacionalismo? Um de seus postulados fundamentais é que as dispensações representam formas distintas em que Deus tratou com o ser humano: a dispensação da lei, da graça, do governo humano.

Outra ênfase do dispensacionalismo é sua hermenêutica literal. Disse Ryrie: “O literalismo conseqüente é a base para o dispensacionalismo e, desde que o literalismo conseqüente é o lógico e óbvio princípio de interpretação, o dispensacionalismo está mais que justificado.”

O dispensacionalismo dá uma forte ênfase em Israel. Parte do pressuposto de que o reino que Jesus ofereceu a Israel foi o reino teocrático de Davi, ou seja, um reino terreno de caráter judaico. Quando Israel rejeita essa oferta como que ocorre uma mudança de direção, o reino é suspenso e Jesus funda a igreja.

Já entrando em terreno decididamente escatológico, o dispensacionalismo afirma que a chamada “segunda vinda de Jesus Cristo” acontecerá em duas etapas. A primeira delas, chamada de “arrebatamento”, significa que a igreja será tomada por Jesus Cristo a fim de ser levada ao céu, em cumprimento.

A motivação parece ser a fuga da grande tribulação.
A segunda etapa será a “revelação”, isto é, a vinda de “duas segundas vindas”: uma para a igreja, outra para o mundo. Terão lugar duas vindas, uma secreta e outra pública.

O dispensacionalismo afirma que, durante o período da grande tribulação, os judeus pregarão o “evangelho do reino”, e que se converterão muitos judeus e gentios. No fim da grande tribulação, Jesus Cristo regressará para o mundo e estabelecerá o reino de exatos 1000 anos, nos quais ele reinará a partir de Jerusalém e serão reiniciados os sacrifícios do Antigo Testamento no templo reedificado. A explicação para a realização dessas metas está na prisão de satanás durante esses 1000 anos.
Mas será derrotado e lançado ao lago de fogo. Os mortos ressuscitarão e comparecerão diante do grande trono branco e serão julgados. Depois virá o estado final da criação de Deus, com o novo céu e a nova terra.

O pré-milenarismo histórico
Essa escola de escatologia coincide com o dispensacionalismo no sentido de interpretar literalmente o milênio de Apocalipse 20. É chamado de “pré-milenarismo histórico” porque remonta aos Pais da Igreja. Mantém sérias diferenças com seus outros postulados efetivamente, o pré-milenarismo histórico questiona a interpretação judaica do reino trazido por Jesus.
Os argumentos brandidos pelo pré-milenarismo histórico para fundamentar sua posição é que não há “arrebatamento secreto”, já que antes do retorno de Cristo se manifestará o império da iniqüidade ou de ilegalidade, em cumprimento à predicação de Paulo em 2 Tessalonicenses 2, em que corrige o que parecia estar indicada em 1 Tessalonicenses 4.13ss e que trouxera conseqüências graves para conduta de alguns crentes de Tessalônica, que, como Cristo já estava às portas, deixaram de trabalhar e de se ocupar das “coisas do mundo”.

Finalmente, para o pré-milenarismo histórico, não há um pretenso “arrebatamento secreto pré-tribulacional” da igreja. O único ponto importante em comum é a crença em um futuro milênio literal de governo de Jesus Cristo na terra.

O pós-milenarismo
O pós-milenarismo é o ponto de vista sobre as últimas coisas, que defende que o reino de Deus agora está sendo difundido no mundo através da predicação do evangelho e da obra salvadora do Espírito Santo nos corações dos indivíduos, que o mundo acabará sendo cristianizado e que o retorno de Cristo ocorrerá no fim de um longo período de justiça e paz comumente denominado milênio.
Alguns conceberam o milênio como algo do passado, enquanto outros creram que pertencia ao futuro, possivelmente exatamente antes da segunda vinda. A forma mais recente de pós-milenarismo se relaciona com uma descrição de corte humanista e evolucionista e é caracterizada por uma visão otimista que entende que o mundo está num processo de melhora.

Parece não ter tido representantes entre os Pais da Igreja. Foram os puritanos da Inglaterra no século XVI que, em aberta crítica às reformas da Igreja Anglicana – que eles julgavam insuficientes e superficiais – lutavam por uma reforma muito mais profunda. Produziu teólogos importantes como John Owen, Richard Baxter e John Bunyan.

Para o pós-milenarismo, o milênio representa uma idade de ouro, um tempo de prosperidade espiritual que se verificará no presente tempo da igreja, em uma espécie de grande avivamento que implicará a conversão em massa de gentios e judeus, em cumprimento da visão paulina que encontramos em Romanos 11.25-27.
É fácil indicar que o pós-milenarismo teve seu momento de esplendor no século XIX, mas entrou em colapso com duas conflagrações mundiais do século XX.

Amilenarismo
O termo “amilenarismo” se aplica à corrente escatológica que postula que o milênio não deve ser entendido como um período literal de governo de Jesus Cristo sobre a terra. O que caracterizava essa escola, portanto, é que a postura hermenêutica em relação ao texto de Apocalipse 20.1-7, que, diferente das outras perspectivas já estudadas, entende que, por se tratar de uma passagem de natureza apocalíptica, não se deve interpretá-la em termos literais, porém simbólicos.
David Bruce afirma que vários Pais da Igreja adotaram esse tipo de interpretação, entre os quais menciona Policarpo de Esmirna, Barnabé, Clemente e o documento chamado Didaquê (o ensino dos apóstolos).

Alguns amilenaristas têm objetado ao termo “amilenarismo” porque, como disse Anthony Hoekema, ele sugere que seus adeptos não crêem em nenhuma forma de milênio, ou que simplesmente ignoram a passagem de Apocalipse 20.1-7. Por essa razão, Hoekema propõe substituir a expressão por “milenarismo realizado”.
Decisivo é a interpretação que o amilenarismo faz da passagem chave, no sentido de considerá-la simbólica do tempo da igreja agora. Cristo conquistou a vitória decisiva sobre o pecado, a morte e Satanás. A partir dali, ele já reina. Precisamente, outra ênfase do amilenarismo está na afirmação da presença do reino de Deus. Falar de reino de Deus é referir-se a um reino já presente a partir da obra de Jesus Cristo, um reino eterno e consumado.

Em apocalipse 20, onde se diz que Satanás será aprisionado, os amilenaristas não entendem isso como algo futuro, mas como algo atual, no sentido de que Satanás não pode impedir que as pessoas ouçam a mensagem do evangelho do reino e, pela fé em Jesus Cristo, experimentem seu poder. Os amilenaristas interpretam os “tronos” como uma referência a tronos celestiais e não terrenos. Eles fundamentam sua exegese apelando para o fato de que a palavra grega thrónos (“tronos”), que aparece 47 vezes no Apocalipse, se refere a tronos nos céus.

“O milênio é agora, e o reinado de Cristo com os crentes durante esse milênio não é um reinado terreno, mas celestial.”
O amilenarismo entende que a segunda vinda de Jesus Cristo será precedida por certos eventos, como a pregação do evangelho a todas as nações, a conversão da plenitude de Israel, a grande apostasia, a grande tribulação e a vinda do Anticristo. Depois, Cristo voltará em um só evento escatológico que podemos chamar indistintamente de parusia, apocalipse ou epifania; os mortos em Cristo ressuscitarão com corpos de glória e os que estiverem vivos nesse momento serão transformados em um piscar de olhos (1 Tes 4.13ss.).

Escatologia ciência-ficção
Uma forma extrema de pré-milenarismo dispensacionalista foi se formando através do tempo, conseguindo, a partir da década de 1970, um grande movimento de vendas, devido ao seu caráter sensacionalista. Uma da obras que mais influiu nesse tipo de escritos escatológicos foi A agonia do grande planeta terra, de Hal Lindsey. O “arrebatamento secreto” da igreja, orientado por uma série de fatos mundiais como a formação do Mercado Comum Europeu e a ascensão da União Soviética que, obviamente, o autor considerava perigosa, Lindsey não tem dúvidas para identificar personagens e movimentos que indicam um fim próximo para o mundo. O autor relacionava a União Soviética com o Anticristo apocalíptico.
“Por mais negro que pareça esse quadro, o futuro nunca foi mais brilhante, pois, à medida que as coisas ficam mais difíceis neste velho mundo, isso significa que a vinda do Messias Jesus está muito mais próxima!”

“O colapso do comunismo e o desaparecimento da União Soviética pôs em evidência a superficialidade desses ‘mapas e esquemas escatológicos’, obrigando seus idealizadores a fazer um sério replanejamento dos mesmos”.
Enfim, trata-se de imagens apocalípticas próprias de ciência-ficção, mas que estão longe de ser resultado de sólidos e sistemáticos trabalhos exegéticos.
Antes de Gorbachov, o meio foi a escatologia chamada “sistemática”. Agora o meio é a ficção.

Em resumo: o milenarismo é uma interpretação cujo fundamento escritural é sumamente débil, já que a única passagem que fala do tema de forma explícita é Apocalipse 20.1-7. Sua origem, não obstante, é anterior a João, já que ele se baseia em alguns escritos apocalípticos intertestamentários, especialmente o livro de Esdras.
Devemos fazer uma distinção cuidadosa entre o pré-milenarismo histórico e o dispensacionalista. Ambos defendem um futuro governo de Jesus Cristo por mil anos sobre a terra. Mas o dispensacionalismo representa uma moderna escola de escatologia, com ares chamativos de novidade. O pós-milenarismo gozou de certa adesão antes do século XX, mas a explosão das guerras mundiais fez com que ele perdesse força.

O amilenarismo se afirma em uma exegese que pretende levar em consideração o caráter apocalíptico do número 1000 em Apocalipse 20. Uma forma extrema de dispensacionalismo foi se formando a partir dos anos 1970 e, apesar de ficar totalmente off side a partir da comoção causada pelo desaparecimento da União Soviética e a queda do muro de Berlim, ela não abjura de seus postulados centrais. Pelo contrário, deixando de lado exposição e doutrina, seus expoentes continuam insistindo nas mesmas afirmações de antes, só que agora o fazem de vertente ficcional.
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Falar do conteúdo do livro de Apocalipse, nem sempre é uma tarefa fácil. No entanto Alberto F. Roldán o faz de forma agradável, uma vez que discorre, neste capítulo sobre as escolas e seus principais expoentes.

Sem dúvidas, podemos presenciar nas igrejas, livros, televisão, cinema etc., várias alusões com o referido tema.

Muitos com o intuito de formar massa crítica para promover algo ou alguém. Outros, literalmente com finalidades financeiras. Talvez o que muitos não queiram é refletir biblicamente e profundamente sobre este tema.

Assim, como argumenta o autor, outros tantos o fazem sem qualquer preparo ou aprofundamento exegético.

De certa forma, estamos bem com os conteúdos que temos sobre as “interpretações” do apocalipse se comparar com os tempos passados da Igreja.

Antes a vida das pessoas, de certa forma, girava em torno da religiosidade centrada nos pensamentos limitados de alguns. Hoje, vivemos num momento diferente. Buscamos significados para tudo o que está escrito nas escrituras, mas o fazemos com mais liberdade. Se estes significados estiverem ocultos, melhor será.

O que impressiona é que o conteúdo do livro de Apocalipse é realmente desafiador. E sua possível interpretação, pode induzir a muitos a erros e deslizes. O erro, todavia, está em analisar um único livro e tentar formar dele uma regra ou um padrão a ser seguido.

Outros textos são tão desafiadores como os de Apocalipse como, por exemplo, o texto do Evangelho de Lucas 17.34-37, “Um será tomado, e deixado o outro”... se compararmos com os versículos anteriores (17.27), fica a pergunta: quem foi tomado? e quem foi deixado?

Assim, o conteúdo do Apocalipse continua a trazer várias interpretações, tantas que nem se quer conseguimos identificar nas comunidades qual linha de pensamento é defendido.

Passo a olhar com mais atenção e mais cuidado para leitura e, possíveis interpretações deste maravilhoso livro.

No entanto creio que, assim como os livros da Bíblia, o Apocalipse é tão atual como são as cartas de Paulo.

O que precisamos é da sabedoria do Espírito Santo para o entendimento que nos faça crescer na fé, para sermos bons servos do Senhor.